30/08/2020

Sutileza

Sutil beleza
a sorte
a incerteza
do que se faz desse homem
na hora em que já não olha
os olhos contentes
a pele que vibra
o esmero da vida
a sutileza
do cacho que cresce
e apetece
o poema
a próxima cena
a vida serena
que só acontece na hora em que olha
porque esse homem
sem tal transcendência é nada
ou quase nada.



(Paulo Vitor Cruz)

12/08/2020

Caça às bruxas

Está tudo à flor da pele
mas
meu bem
não me cancele

eu não peço que atenue
a revolta
o ferimento
o ato falho
nem desconsidere

peço um minuto
peço que espere

e não negue a correção
ao errante do seu lado
que couber o aprendizado
pois
aos olhos do czar
dividir é quebrantar

estar tudo à flor da pele
nos defronta
nos compele
ao ataque virulento
ao completo afastamento

não sei quanto o erro fere
eu não sei
mas calma
espere
por favor
não me incinere

ah
meu bem
não me cancele... 

 

 

(Paulo Vitor Cruz)

14/06/2020

Poema da retomada inevitável

Devolva-me o verde amarelo
sabor fruta fresca banhada em suor
que convida pra festa
e samba e afronta
e capoeira e enfrenta
a mazela na próxima esquina

devolva-me o verde
o amarelo
e seus sentidos
quero de volta o afago
de tempos idos

porque o meu verde não farda
floresce diverso e acolhe em paz
cochila gostoso a cuca fresca

porque o sangue que jorra é ouro roubado

eu choro arrasado
porque amo e não quero perder
e eu perco e perco
e perco e perco
e então
quero morrer
quero morrer
qualquer morte sem cor
melhor ser vazio
que aluidor
dos matizes
das preces
das casas
das gentes

já chega
me devolve
devolva-me logo
devolva-me logo o verde amarelo
o tom da aquarela que inunda meus olhos
porque eu quero é batucada à beira mar

ou me afogo - eu sou poeta -
ou padeço - eu sou poeta -
eu sou poeta e careço
eu careço de vibrar.

(Paulo Vitor Cruz)

07/06/2020

Ode ao Botafogo

O futebol não faz sentido
o grito de gol é a confissão
a catarse é o bom motivo
pelo qual se abraçarão
loucos ora comedidos
no sofá na arquibancada
como quem perfaz o rito
de euforia extravasada

o Botafogo nasce disso
mas é todo um tanto mais
feito receber pros filhos
o legado dos seus pais
pois quem veste a camisa
se envolve e torna parte
a disputa não seria
adjetivada em arte

não houvesse o Garrincha
pra driblar algum João
ou o Túlio Maravilha
artilheiro e brincalhão
ou aquela a cavadinha
na incerteza da vitória
ou Heleno ou Quarentinha
ou Biriba e sua história

e a superstição certeira?
ninguém pode contestar
pois a estrela solitária
vibra junto com o seu par
o completo apaixonado
torcedor botafoguense
eis o grande resultado
e o Botafogo vence.

(Paulo Vitor Cruz)

06/06/2020

Corpo a corpo

Violar o corpo
pôr as mãos pra cima
abaixar a cabeça
como quem lastima

violar o corpo
conter o cabelo
decepar a barba
difamar o pelo

violar o corpo
recobrir o seio
censurar o dorso
e dizê-lo feio

violar o corpo
engolir selvagem
aspirar fumaça
e não ter coragem

de fitar o corpo
sem ser hesitoso
evitar-se o toque
sujeitar o gozo

violar o corpo
e opô-lo ao tempo
tolerar o dolo
de maldar o intento

porque morre o corpo
todo e qualquer
o que viola teme
o corpo quer.

(Paulo Vitor Cruz)

01/06/2020

Epopeia à brasileira simplificada

Havia um pobre no aeroporto
e o desejo que estivesse morto
fosse ele mais um funcionário
ou viajasse em um outro horário
poderia até passar batido
esse cordão igual ao do bandido
essa bermuda caída
essa risada atrevida
a voz alta e reclamona
essa camisa bem cafona
e sua mochila agarrando
na esteira das malas justo quando
a bagagem do queixoso passa
ele engole sem choro a pirraça
e a reação deveras temerária
contra esses ares de rodoviária
advindos desses tipos vis
que destruíam todo o seu país
enquanto aguarda a hora da virada
pra sair do armário a pátria armada
e revelar que um filho seu não foge à luta
o filho que é seu
o filho da puta.



(Paulo Vitor Cruz)

23/05/2020

Acalanto companheiro

Divididos entre prazer e dor
ele refrata
eu nem vou
ouça-me bem
camarada
ele não é como eu sou
e somos todos distância
somos todos ardor
ardemos
e a floresta
toda noite
está em brasa
a notícia
todo dia
nos arrasa
precisamos
todo tempo
estar em casa
mas tenha calma
meu amigo
não se desespere
pois lhe digo
que o asfalto
- tapete negro onde o progresso desfila -
rio tortuoso repleto de perigos
há de secar
é inevitável
porque não vai dar
é inevitável
não se afogar
quando o bloco puder tomar a rua
porque nós seremos mar
se me preservo é porque quero estar presente
se te preservo é para sermos tão somente
gota d'água ardente
nessa grande festa
a verdadeira festa
no verdadeiro lar.

(Paulo Vitor Cruz)

28/04/2020

Falario

Ouça o que
eu falo falo
falo sério falo
eu falo falo
falo não
quieto falo
falarão
falo falo
quieto falo
falo não
cala
para
cala
para
cala
fala não

não fala
falo
não fala
falo
falarão.


(Paulo Vitor Cruz)

10/04/2020

Clausura


Mas que aperto
ninguém por perto
respiro
o peito
está deserto
a clausura entedia e desespera
me guardo no quarto
lá fora amanhece
e eu anoiteço
empalideço
e me embaraço
e me confundo
e me rechaço
e quero e não quero e quero e não quero aquilo mais
ansiosa a mente
visita o momento em que tudo acaba
o momento em que tudo acaba
e eu renasço
consciente do quanto fere
ser casso
vou urgir o toque nessa hora
e haurir o cheiro
e transpor a pele
para impregnar ligeiro
a carne com o que é humano
como quem preserva o companheiro
do dano destes tempos
de não ser
de corpo inteiro.


(Paulo Vitor Cruz)

31/03/2020

Ode à primavera que ainda chega



A primavera
depende de você
para sagrar-se bela

se fica à mercê
não se desvela

carece envolver
a sua janela

quem olha
quem vê
quem tarda nela

quer seus sentimentos transformadores
para ascender as suas cores
e entender-se bela

como ela
como ela

portanto

suporte um pouco mais
mesmo quando
incapaz

não se desespere que esse outono passa
não se desespere que esse inverno passa

espere a primavera
como quem coopera
com a boa nova
com a nova era

tenha esperança
que ela te espera
feito aquarela
transmutando a tela

bela como ela

primavera.


(Paulo Vitor Cruz)

25/03/2020

Reminiscências crepusculares

Mamãe precisa ficar em casa agora
o mundo todo agora é perigoso

mas doce como ela
disciplinada como ela
ficar ocorre bem

surge aquele tempo de fazer coisas
coisas que a rotina não deixa

eu ainda preciso sair
mas tenho me cuidado
há um peso nos ombros deixando marcas
há uma vontade sempre urgente de voltar

justo eu
homem de paz que abomina a guerra
sou mais um soldado
contra o inimigo invisível

mas tenho me cuidado

o que me pega desprevenido
se posso confessar no poema
é chegar em casa
vê-la abrir a máquina de costura
- andava de lado há tempos -
perguntando de quem lembrava aquela cena

ora
tão fácil respondi "da vó"

então mamãe contou da infância
de ficar perto enquanto vovó costurava
de depois ir escondido
retirar a agulha com desvelo
e costurar alguns sonhos
numa folha de papel

contou também
da primeira vez que costurou de verdade
uma blusa de alcinha
blusa essa que vovó prontamente aprovou
das bermudas que fez pro meu pai
das roupinhas de bebê pra mim
ela foi lembrando
e foi lembrando

o fim de tarde foi abrir a porta pra memória entrar
eu juro que sei
mas não quis dizer
que os raios de luz do arrebol traziam as recordações
vindas do céu de onde vovó está

a poesia tem seus momentos
e estes precisam ser respeitados
da mesma forma como se deve respeitar as mães
e suas capacidades de surgir na hora incerta
com a palavra que mais precisamos


o laço remoçou a memória
e a memória estreitou o laço
o laço
apertado nó
que não se desfaz
como só quem sente
é capaz.

29/02/2020

Allegro ma non troppo





Tire seu sadismo do caminho
que eu quero passar com o meu amor

ou causo em você o desalinho
desalinho do bom
arrebatador

tire porque eu não vou sozinho
e quem vem se juntar
vem pra te propor

a se alastrar no que é espinho
e fazer germinar
tudo o que flor.

(Paulo Vitor Cruz)

25/02/2020

Respeite o meu carnaval

Respeite o meu carnaval
são muitas dores que tenho
afasta pr'eu respirar

deixa eu pintar a face
com as cores todas do ar
que for invento agora
deixa eu na rua sonhar

dentro do samba que toca
meu tenaz dorso de escravo
ou morro aqui de penúria
careço sim desse afago

respeite o bloco que passa
porque o bloco é um só
só quem não sofre não sente
o laço torna-se nó

o nó que não desamarra
o nó que é ritual
de mitigar a mazela
respeite o meu carnaval.

(Paulo Vitor Cruz)

09/02/2020

O poeta louco ataca novamente

Eu
que já me assumi poeta louco
devo também confessar-me poeta pai
poeta mãe
poeta família inteira

tenho as palavras como filhas
as rimas como sobrinhas
o verso como ente querido
e os vocábulos
ah os vocábulos
os vocábulos são os meus meninos
neles deposito todos os meus anseios de homem comum
porque sou pai
e também exagero às vezes

poeta louco
e pai presente
esforço-me para compreender as minhas meninas
acompanho de perto
- ou ao menos tento -
as mudanças ortográficas
vejo o vocabulário crescer
apoiado em evoluções tecnológicas
globalização
e invencionices populares criadoras de neologismos
comemoro cada novidade como se comemora um nascimento um pai
mesmo que não seja de minha criação
assumo o sentimento de paternidade
e desconsidero a parte lógica da coisa para fazer comparações
para te convencer que faz sentido o que estou dizendo
porque nessas horas é o que me convém
é
eu sei
eu sei
eu sou um poeta louco.

08/02/2020

Camila

Moça
você é bonita

a forma como existe é bonita

respira sem medo
como se conhecesse os segredos todos da criação
e então se move entre os cômodos da casa
com a astúcia felina e vivaz de mulher

notá-la é boa ventura

o que peço é que passe por mim de novo e de novo
porque te ver passar deixa o dia melhor
e a percepção de que é você por aí existindo
cria em mim um ensejo de esperança indecifrável

seu ato de beleza é generoso e libertador
possibilita que mesmo minha simplória observação
do movimento corriqueiro do seu corpo
consiga captá-lo sem esforço

é despertar para uma outra experiência
além dos afazeres comuns da rotina de intentos

e
se me permite dizer
perdoe a abordagem assim dessa maneira
- nesses tempos de dor e descrença
quedamos ainda mais à flor da pele -
mas é uma necessidade discorrer a respeito
e querer que resistam os seus cachos
os seus olhares
e pensamentos

a sua reunião de formas e cores é rara
moça
e você é rara e bonita

e digo
um tanto quanto audaciosa
moça

você parece uma estrela.


(Paulo Vitor F. da Cruz)

05/01/2020

Jaburu carbonizado

Queima a floresta
queima satanás
queima o que não presta
queima satanás
queima e faz a festa
queima muito mais

queima o comunista
a quenga
o grevista
o pobre
e toda a lista
queima satanás

queima sem vergonha
queima satanás
incinera tudo
mata o incapaz
queima o pecado
queima os animais

queima até os ossos
ergue os destroços
faz valer os nossos
confortados ais.

(Paulo Vitor Cruz)

07/11/2019

Ponto de encontro

Emaranhar-se em laço
tornar-se abrigo
dar mais um passo
suprimir o espaço
abrir-se junto
sentir-se uno
o suprassumo
abraço.

(Paulo Vitor F. da Cruz)

27/10/2019

Olha só o que a vida está fazendo comigo

Olha só o que a vida está fazendo comigo
olha o menino partindo
leva os devaneios
leva o dia lindo

mas quem leva o sol pra longe
é o meu pensamento
é o passar do tempo

vida que segue
vida que segue
segue e se faz
como consegue

se acha se perde
e se multiplica

já não sou apenas eu
sou teu
sou parte
sou uma lembrança que fica
sou uma saudade que vem
sou parte
e parte
sou quem eu só quero bem
o cachorro na rua
a senhora que passa
o chegar na janela
que não aconteceu
olha
eu também sou filho de Deus

trabalho e me desgasto
escrevo e respiro
o peito cheio de dores e dissabores
me confunde as cores
porque quem se acostuma com a luz
tende a não compreender o movimento da sombra

você não está vendo?
quem leva o sol pra longe
é o meu pensamento.

12/10/2019

Está tudo errado

Está tudo errado

está tudo errado

o grito abafado

o peito apertado

o duro recado

que nos fora dado

de sonho acabado

de medo estampado

está tudo errado

está tudo errado

juntou deputado

Supremo Senado

e o bando safado

deixou acertado

e foi de bom grado

e foi estancado

em prol do mercado

e foi divulgado

e noticiado

fiquei enojado

está tudo errado

está tudo errado

se jura sagrado

o ódio exaltado

o nativo aliado

idealizado

amigo e engraçado

ficou no passado

bem preso e amarrado

pro bem do reinado

do patriarcado

seremos livrados

de todo pecado

sem mais rebolado

sem desvirtuado

sem ver um barbado

com seu namorado

não foi comprovado

mas vale o ditado

mais vale o ditado

mais vale o ditado

o verso-enfado

delata o brado

de que está pesado

de que está pesado

tá tudo quadrado

tá muito apertado

o cerco fechado

o pobre? coitado

será massacrado

por mero trocado

está tudo errado

está tudo errado

o clima mudado

você do outro lado

você do outro lado

e o chicoteado?

e o sangue espalhado?

quem cai baleado

cai pra ser calado

cai abandonado

mas cai revoltado

o alvo acertado

é comemorado

está tudo errado

está tudo errado

o interessado

distorce o dado

o branco tá armado

o bote tá armado

melhor ter cuidado

melhor ter cuidado

no sinal fechado

está tudo errado

mas eu me deparo

com um dia raro

em que eu divago

e causo estrago

e causo estrago

num gesto exato

desfaço o boato

com todo aparato

já imaginado

sou aglomerado

de antissoldados

jamais derrotados

ou resignados

embora açoitado

eu marcho empolgado

e grito bem alto

e grito bem alto

me livro de algo

que estava engasgado

num último ato

de fé insensato

pra ser conservado

e reverberado

gritado gritado

e continuado

até ser tornado

o nosso legado

o olhar elevado

o pensar infinito

o amor desregrado.

25/08/2019

Noturno entre brumas

A mudez umedece meus olhos
ficamos no escuro
quem pode enxergar?

veio a fumaça
chofer incidente
da noite que deixa
a gente sem ar

eu sei
ninguém sabe
já vi
ninguém viu
fumaça é floresta
é made in Brazil

ficaram as cinzas
e nada ficou
apenas vertigem
no meu dissabor

eu tento
e tento
quebrar o silêncio
que surge por dentro
mas falho vetor

gasto as forças
as chances e as horas
ficaram as cinzas
e nada ficou.

30/07/2019

Na escola eu aprendi a ser viado

Na escola eu aprendi a ser viado
e muito agradeço haja vista
que hoje quem me chama de safado
veste a mesma farda que o fascista

urra que não quer um namorado
reza a oração terraplanista
bate soca chuta e fica irado
não aceita nunca que eu resista

vacinado aviso ao patriota:
- poupe a saliva e o cuspe acre
e vá já lamber a velha bota

sempre engraxada pro massacre
pra não parecer tão idiota
e sobreviver a mais um lacre.


(Paulo Vitor Cruz)

20/07/2019

Julho dezenove

Fiquei feliz quando soube que Padre Marcelo Rossi
o padre pop
o padre povão
não quis saber de prestar queixa
contra a autora do empurrão
disse que se fez B.O.
foi da Bíblia e da Oração
me lembrei de alguma forma
do que na vida é ser cristão

fiquei feliz quando soube que minha mãe
voltou até o vendedor para devolver o troco a mais
e que o homem ficou agradecido e quis recompensá-la
a recompensa pouco importa
pouco importa a gratidão
pra mim vale a memória
de potência da ação

fiquei feliz quando soube que eu
amargurado com tanta coisa que vejo e sinto e ouço dizer
ainda mantenho a capacidade de esperançar
esperançar
verbo resistência
que é mais forte em comunhão
verbo fé que não se apaga
mesmo quando dizem não
me lembrei de alguma forma
qual a minha direção.

18/05/2019

Poema de pais e filhos

Quando eu fui menino
morria de medo da minha mãe brava
dizendo que ia contar pro meu pai tudo o que eu aprontei
- a meninice vez em quando enriquece as lembranças
ante a escassez de inocência destes tempos -
veja você
lembrar disso e mais aquilo
me convence de que ainda sou menino
agora que morro de rir escondido da minha mãe brava
dizendo ao meu pai que vai contar pra mim tudo o que ele aprontou

o tempo teve a necessidade de passar
e deixar nítido que meus pais são os meus primogênitos
ao passo que serei eternamente o menino deles

veja você
relação de pais e filhos é sempre igual
um acontecimento inédito que não se vale de laços de sangue
compatibilidade de gênios ou posicionamentos hierárquicos
não
não se vale de conveniências
nem de convenções
só se vale
de amor.

20/04/2019

Identidade

Sou mosaico humano
emaranhado genético duramente erguido
sou índio
português
africano
italiano

e posso te contar com detalhes
se for de seu interesse
que meus bisavós paternos eram primos
que fugiram de Portugal atrás de casamento no Brasil

dizer que o Floriano do meu sobrenome é italiano
que provavelmente já foi Floriani após a chegada da família
mas que sua origem é Ferriani
e que se refere a uma família de guerreiros da antiguidade

mas não posso te contar da minha origem indígena
só imagino coisas sem nenhuma propriedade ou orientação
não sei a tribo
nem o costume
só sei que o sangue foi tirado
tirado na marra
e que há muita morte em minhas veias
que pulsam com a mesma intensidade
do impedimento histórico em te contar
os detalhes do meu sangue afro
só há manchas
e vazios
e engasgos ensurdecedores

diante do mar tenho saudade e medo
- a travessia não foi fácil para toda a herança que carrego -
dizem dentro de mim
as lembranças que me foram arrancadas antes de nascer

eu não compreendo nada desses sentimentos e não poderia
porque a minha identidade é mosaico
emaranhado genético duramente erguido
a minha identidade não tem voz
nem se concebe
e está mesmo fadada
à sina sinistra
de não se achar.

16/03/2019

Momento de glória

Todo mundo tem o seu momento de glória

te conto com orgulho
que hoje mais cedo
entre as paredes duramente erguidas
na cidade onde quase tudo é concreto
eu tive o meu

estava ali na fila do pão
quando apareceu um capitalista degenerado
incitando pessoas a vender a alma

conversamos por alguns instantes
tentei convencê-lo
mas ele
infelizmente
não observou muito valor na minha existência errante
ofereceu-me um espelho
com a devida delicadeza daquele que carrega nos ombros
a obrigação moral de conceder a todos
alguma chance de negócio

ofereceu-me um espelho
um espelhinho apenas
nada mais

posto isso
pensei o tempo que fosse justo pensar
diante de uma escolha de tamanha importância
e aceitei oportunamente o escambo
- captei
entre os desencontros de olhares que me foram permitidos
algum brilho naquele espelho
e tudo o que brilha
me encanta de alguma forma -

finda a negociata e já em posse de meu novo espelho
vi o mundo doente

tentei chorar

copiosamente
porque o momento pedia

tentei chorar
tentei chorar
tentei chorar

e eu consegui!

(Paulo Vitor F. da Cruz)

14/02/2019

Treno à brasileira

O país estar sangrando
de tal modo me afeta
que não sei se resta força
pro ofício de poeta

tenho medo e alguém morre
pela raiva de quem mata
tenho asco e isso fere
com minúcia tão exata

que a ferida é certeira
dói
maltrata
e me irrita
ela mostra que sou fraco
e a grandeza
é restrita

eu vacilo
mas retorno
por quem segue resistindo
são heróis
são minha gente
e seu gesto
algo lindo.

06/01/2019

Sinal fechado para pedestres

Entre censuras e falácias sem nenhum sentido
o colorido da cidade me distrai
escapulo
reflito sobre a origem de minhas forças

- como fui capaz de superar tantos desafios
e continuar a postos para a nova provação?

certas lembranças visitam meu argumento
enquanto caço insano a explicação apaziguadora

duvido de mim mesmo

na sequência
algo não faz sentido
sinto-me à margem da humanidade

aguardo o tempo que preciso para novas considerações

no momento oportuno
penso até o completo esgotamento
depois aceito a ideia de que minhas forças
todas elas
são provenientes do amor

crio a imagem do amor que recebo
amalgamado ao amor que sinto

aceito a ideia de que ser amado fortalece
e que a sensação por si só
possibilita arbitrariamente certo grau de onipotência
mas aponto ainda em tempo
que mesmo amado por todos os seres do planeta
faltaria algo para romper com eficácia o vacilo certo

aceito a ideia com a importante ressalva
destacando que somente amar
somente o ato de amar
- aquele que eu não explico e você entende -
é o que ampara no fim das contas
sinal fechado
caminho livre
escapulo colocando o pensamento em segurança
diante da necessidade de atravessar a rua
venço mais esse pequeno obstáculo brilhantemente
resistindo à nova fagulha de incerteza
salvo por nós dois.

26/12/2018

A minha bandeira

A minha bandeira em paz será vermelha
será a pele vermelha
a preta a branca a amarela
arco-íris multicor
será cor de riso fácil
colorida da afeição
por alguém ali na rua
que eu vou chamar de irmão

vai ter cor de verde mata
cor da água que chegou
com a chuva com o vento
com a tarde
com amor
e mesmo sendo tão bonita
tão repleta de valor
essa tal bandeira minha
deixa - se preciso for -
o seu tremular no mastro
pra tornar-se cobertor.

03/11/2018

Vou-me embora pro Piranhão






Vou-me embora pra Pasárgada
que se chama Piranhão
todo mundo lá é livre
gay não é aberração

a mulher anda bonita
veste a roupa que quiser
sem sofrer nenhum abuso
sem ninguém pegar no pé

lá no Piranhão tem tudo
negro índio pobre ateu
só não tem a truculência
desse preconceito seu.

Boa Viagem



Só nos resta ir embora
como forma de lutar
vamos juntos de mãos dadas
vamos para um bom lugar

o destino pouco importa
se o caminho é o coração
pra chegar sequer um passo
as mãos dadas bastarão.

(Paulo Vitor F. da Cruz)

29/08/2018

Resta um

Você mata o bandido
vem outro bandido
você mata o outro bandido
vem o irmão do outro bandido
você mata o irmão do outro bandido
vem o amigo do irmão do outro bandido
você mata o amigo do irmão do outro bandido
vem um outro bandido que não tem a ver com a história
você mata o outro bandido que não tem a ver com a história
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
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e mata
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e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
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e mata
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e mata
e mata
e mata
e mata
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e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
e mata
vem uma bala perdida de um outro matador de bandido
e te mata
da mesma forma como se mata o bandido.

29/07/2018

A verdadeira estória do grão de orvalho - Meu novo livro de poemas


"MANUAL DO ENCANTAMENTO
O peixinho a borboleta
o arvoredo e o querubim
só enlevam a cidade
quando a gente quer assim."

...

Prezado leitor,

Meu novo livro está disponível para venda no site da PerSe, uma plataforma virtual que dá suporte a autores independentes, assim como eu.

Fizemos uma tarde de autógrafos no Mendes Bar no dia 21/07/2018 como parte da Tarde Cultural que aconteceu por lá com muita música (DJ Crraudio, Mr E.Z. Mc, Victor Benini e a banda Crua), literatura (sarau com a participação da galera e convidados), HQ (Rafael Bianchini, também em tarde de autógrafos) e a exibição dos curtas "Palace, o contador de histórias" e "A orelha de Van Gogh".

Os exemplares vendidos durante o evento contaram com um desconto especial sobre o preço de capa, e o valor correspondente aos direitos autorais da venda dos exemplares foi doado para a ONG Animajudar, da Cidade de Ubá-MG, que visa ajudar animais de rua abandonados.

Link página da ONG para quem quiser conhecer e ajudar: https://www.facebook.com/animajudar/

Link para acesso ao livro na loja virtual:
http://www.perse.com.br/persenovo/livro.aspx?filesFolder=N1530030407498

Você pode também adquirir um exemplar diretamente comigo via e-mail:
paulovitorfdacruz@gmail.com

P.s.: Aproveito a postagem para agradecer a todo mundo que contribuiu de alguma para tornar tudo isso possível. A Vocês (eu ia marcar, mas fiquei com medo de esquecer alguém) a minha eterna gratidão.

Um abraço.


Paulo Vitor F. da Cruz

21/06/2018

Oh, pedacinho inútil de madeira

Oh, pedacinho inútil de madeira
resto ordinário trabalhado em verniz
sobra que amontoa o esquecimento
descarte rotineiro desta fabriqueta
- que sequer tem nome
ou mero endereço
só a produção de fundo de quintal -

desconsiderado
tu não farás parte
da mobília simples
de feição vulgar

seu futuro torpe
não
eu não conheço
pra ser bem sincero
de ti
pouco sei

melhor que eu não pense
melhor que eu não veja
miseravelmente
quero não saber

pois sabendo
eu sinto
e sentindo
sofro

sem sua mazela
eu sou mais feliz

tu que foste planta
e viveu bonito
forneceu madeira
e morreu em paz
já não adianta
esboçar seu brilho
tola bagatela
que já tanto faz

porque não demora
mais que uma noite
para a companhia de limpeza urbana
pôr sua carcaça na caçamba suja
e dar cabo logo da hostil matéria

que não tem valia
morta e incapaz

vilipendiado
tu não serve mais.

26/05/2018

Protesto à moda da casa (grande)

A pátria um tanto quanto convergia
direita e esquerda indignada
o Temer ordenou meter porrada
pra coisa não passar daquele dia

e sua corja urrou que era vadia
a paralisação arquitetada
que era ilegal e exagerada
que era besta-fera era heresia

o povo acabou desinformado
a Globo ajudou na confusão
por ela só se ouviu o afetado

mas por que parou o caminhão
que tem que puxar pra todo lado
o peso de pagar mais um tostão?

21/04/2018

Poema de um dia desses

Dia desses cismei de acreditar
que a felicidade nada mais é
que um estágio tal de gratidão

e que para sentir-me feliz
era preciso antes
sentir-me agradecido

agradecido

pelo dia que nasce
pelo tempo que passa
pela família ao meu lado
pelos amigos presentes
por meu amor
- não o amor materializado
o amor que sinto -
pela capacidade
provinda das forças da natureza
de sentir

por minha saúde
por meu trabalho
e a dignidade que ele me traz

por ver os pássaros
e me lembrar que um dia eu também já voei

por saber o que é ter medo
o que é estar em paz
e valorizar a paz

por ter a chance de
em meio as mazelas todas da vida
poder provocar um sorriso
deixar uma lembrança boa
ou um vestígio positivo qualquer
saborear o que a vida tem pra dar
encarar as dores os traumas e as crises
e sorrir alegremente
por receber a vida
não com um propósito
mas como um presente.

12/02/2018

Caçador

Caço a felicidade
me desgasto caço caço
mas não tenho nenhum rasto
donde ela possa estar

caço em mim em ti no mundo
tento um elo mais profundo
mas sequer por um segundo
chego perto de encontrar

eis que a felicidade
move toda a utopia
se do alto ela me guia
eu não sei se chego lá

mas não há tristeza alguma
não há sombra não há bruma
se estou longe eu tenho uma
direção para rumar

conseguir nunca sacia
pra quem vive todo dia
de caçar
caçar
caçar.

03/02/2018

Poema sobre outro poema

Conclui um poema que comecei a escrever três meses atrás
poema custoso
que fala de parto
ou não exatamente

foi como um parto
- embora eu não possa compreender na pele o que é de fato -
sofri
senti dores
suores
tremores
e aquele medo que a gente sente nessas horas

depois ele nasceu
bonito
como toda mãe enxerga
mesmo que não seja nada disso
tudo bem
tudo bem
não vamos perder o foco deste discurso agora
Deus perdoa se eu estiver mentindo e já vai estar mais do que bom

só vim dizer que agora eu sei
que um poema quando nasce
é como um filho

a gente critica
põe de castigo
diz que não pode
e que não serve
que está errado e está errado
e esbraveja
e vai dormir de cara virada
pega pesado demais às vezes
é verdade
mas seria capaz de dar a vida por ele.

28/01/2018

Quantas Marias

Quantas Marias sacrificadas para conceber o Brasil?
quantas dores de parto
lamúrias
lágrimas
quantas Marias
me diz?

quantas Marias reunidas?
todas juntas mãe gentil
um só ventre
a esperança
a esperança do Brasil
do Brasil terra adorada
dentre outras mil

comento sucintamente que o Brasil é imenso e eu pequeno
para disfarçar cretinamente minha incapacidade de mensurar a tragédia sem precedentes de todo dia
vulgarizada por conveniência das gerações
como é para o corpo
respirar

as Marias do meu país
desconsideradas
não aparecem nas estatísticas
elas não têm fome
nem nome
não fazem parte da história
pois não têm o que contar
ou têm
eu não sei
ouvi dizer que não podem abrir o bico
e que não têm fome
nem nome

mas precisam ser fortes o suficiente para continuar sendo quem fraqueja
quem tem a culpa
e o coração
nesse mundo sem compaixão
que construiremos
em troca de mais um pouco de razão.

22/10/2017

O direito de feder

Estava em seu cantinho quando sentou perto de si um fedorento. Ele já estava cansado depois de um dia duro de trabalho, não ia dar pra aguentar um fedorento do seu lado até chegar em casa. Resolveu esperar uns instantes pra não parecer que arredava só por ele ter sentado do seu lado com todo aquele fedor insuportável. Não era a intenção ofendê-lo. Fingiu que algo pela janela do ônibus chamava atenção e arredou pro lado. De nada adiantou:

— Ei, meu senhor, por que você arredou pro canto?

— Como é?

— Por que você arredou pro canto? Está incomodado com o meu suor?

— Não, meu rapaz. Eu nem havia reparado…

— Não vem com essa, meu senhor! Eu vi que você fez cara feia quando eu entrei. Você não deve saber o que é isso, mas isso aqui é suor de um dia duro de trabalho pra sustentar uma família inteira.

Enquanto contava da origem de seu suor, resolveu, sabe-se lá o porquê, enfiar aquela axila fedida no meio da cara do homem que arredou pro canto. Como falava alto e havia ficado de pé no ônibus, todos os passageiros já assistiam a cena.

— Você está enganado, meu rapaz… Eu só quis olhar pela janela.

— Você não queria olhar é nada! Você só disfarçou pra se afastar de mim e do meu cheiro.

— Ah, quer saber? E se for? O que você tem a ver com isso? Não lhe devo explicações, nem sou obrigado a ficar aguentando esse seu cheiro.

Silêncio total. Comoção entre as pessoas. Pensavam consigo mesmas sobre o pecado que o senhor havia cometido. Como ele poderia maldizer o suor sagrado do trabalho honesto de cada dia daquele jeito? Começaram as manifestações:

— Que abuso! Você deveria ser preso!

— Só diz isso porque ele não é negro e acha que vai sair impune… Seu racista!

— Gente, vamos filmar a cara desse imbecil…

— Temos é que prestar queixa contra esse cara.

Um outro homem tomou as dores do fedorento. Levantou de sua poltrona e veio tirar satisfação:

— Sabe o que eu faço com quem é preconceituoso, seu merdinha? Eu quebro a cara dele!

Não fosse o motorista parar o veículo enquanto se formava um tumulto danado com os passageiros todos, ele teria apanhado mais do que apanhou. Na bem da verdade, só levou uns empurrões e umas chacoalhadas. Escapou do massacre. Mas a coisa ainda piorou muito. O vídeo foi pra internet. Correu meio mundo. Virou notícia na TV. A imprensa forçou as autoridades que forçou o ministério público que forçou os juízes a puni-lo como se devia. O dia do julgamento foi transmitido ao vivo para todo o país.

E assim foi sentenciado: o senhor que não quis sentir o cheiro de suor do homem trabalhador seria enforcado em praça pública.

Houve nova comoção nacional. Muitos gostaram e prometeram fazer caravanas para o grande dia. Outros prometeram protestar contra essa verdadeira barbárie. O que não mudou em nada a sentença.

O dia chegou e foi inesquecível. O senhor que não queria sentir o cheiro de suor do homem trabalhador foi levado para a praça ainda pela manhã. Amarraram-no em uma estátua que ficava praça e deixaram-no tostando no sol sem piedade.

Quem passava achava justo e decente de agredi-lo. Teve um que veio e chutou. Teve um que veio e cuspiu. Teve um que veio e socou. Teve um que veio e xingou. Teve um que nem veio, mas desejou mal. Teve muita gente que se aproximou como quis sem que nada fosse feito.

Quando era meio dia, resolveram que era melhor deixar o homem com fome ali no sol mesmo. Ele ia morrer mesmo, ao menos se economizava um prato de comida. Quando teve sede, deram-lhe urina, o que fez com que as pessoas rissem.

O enforcamento estava marcado para as quatro da tarde, mas atrasou. O tumulto causado pelas caravanas e pelos manifestantes precisou ser resolvido antes na base do spray de pimenta e cacetada. Cinco horas enforcaram o meliante.

Houve quem pedisse clemência em nome do enforcado. Houve também quem pedisse bis. Os deputados correram logo e aprovaram a lei que garantia que todo e qualquer cidadão, a partir daquele dia, teria o direito de feder com dignidade em todos os lugares dentro do território nacional.

08/10/2017

Metamorfose

Acordo assustado
tenho ao redor a tempestade
o livro adormecido em meu quarto amanhece pássaro
com o vento
o movimento
páginas transformadas em densa plumagem
livro que bate asas
voa
e ganha o mundo
enquanto eu
agradecido
tenho a certeza de que jamais voltarei a ser quem eu era
após toda essa transformação.

02/09/2017

De coração

Deixo meu coração no joelho ralado do menino travesso
que desobedece cai e machuca
na conversa boa que varou a noite
ficou na memória e não terminou
no momento errante de garrafa na mão e porre certo
da loucura desmedida sem nenhum propósito
no riso sacana de quem faz o que bem quer
com a falta de destino que mais tememos

deixo meu coração no andar sorrateiro dos cachorros de rua
em busca de mais uma sobra de comida
que contribua com a sua sobrevivência
no cheiro de terra molhada no verão
no sol chegando no começo do dia
na frustração obtusa da boca que não beija quando quer beijar
na mobília sem valor sentimental abandonada em qualquer esquina
no vento do fim da tarde que refresca o suor do corpo cansado
no passo cuidadoso da moça introvertida
na lembrança da família reunida no final de semana
no último abraço que pudemos dar
no filme bonito dos amantes doentes que morrem
trazendo a lembrança de que a gente morre
e o amor é agora

meu coração fica na fé de quem teima em acreditar
e no lamento desacreditado e sem fé

meu coração fica
ao passo que segue comigo
porque meu coração não é bobo
ele não parte
multiplica
para ser mais forte
mais completo
capaz de não vacilar diante de comedimentos parcos
leis de fronteiras e restrições astrais
pelo doce prazer de continuar sentindo

meu coração não é bobo
ele sabe o que faz.

15/08/2017

Portento diminuto

Vi uma joaninha depois de muito
muito tempo
não sei dizer se estava ocupado demais para vê-la
ou se ela simplesmente sumiu por conveniência
fato é que só depois de muito tempo
outra vez a vi
repleto de saudades
quis conversar
contei coisas
busquei lembranças
gastei gestos e expressões
depois senti-me tolo por fazê-lo
percebendo a joaninha calada e indiferente
acreditei por acreditar que saudade nela não se manifesta
porque não há espaço
porque toda ela é joaninha
e é preciso continuar assim
para retribuir o que a existência oferece
como forma de gratidão
vive morre e embeleza a vida
de quem não se basta
e carece de miudezas pra sobreviver
à constatação de não ter feito nenhuma falta

fomos embora
sem nenhum tamanho.

15/06/2017

Poema do poeta louco

Sou poeta louco
dos que sofrem em silêncio
por palavras indefesas
presas
entre parênteses
por regras e sinais

sinto o sufocamento
e a agonia da privação
da palavra
que por vírgulas
tropeça
protesto
torno-a livre
pro algo mais

livre
enfim palavra apenas
sem dores sem penas
sem planos astrais

agora
instrumento de linguagem
matéria bruta de pensamento
signo sem fronteira passivo de cognição

adentra no verso sem freio
faz-se palavra pro bem
e pra todo mal

pois no poema
a palavra é problema
e ponto final.

06/05/2017

30/04/2017

Elegia a palo seco




O espaço-tempo é desrespeitado nessas horas em que as perdas provocam verdadeiros vazios

Belchior indo embora leva consigo um dos elos da palavra vulgar com o indizível
fica um silêncio amargurado
um remorso ininteligível
uma saudade de um tempo que subverteu a si mesmo
pra tornar-se de alguma forma eterno

- que sua memória mantenha-nos vivos -
desesperadamente eu grito em português
como quem já não sabe
se nesse mundo há silêncio
ou surdez

grito em português
para que o embrutecimento não nos reduza a pedra
a multidão de pedra onde não há mais canção

para que não sejamos ilhas sem voz
dentro de nós mesmos.

22/04/2017

Profecia de cunho cerrado

Ao cerrado será dado
o valor do grão de soja
e o barão que come e boja
verá pois alardeado

que o cerrado se elevado
a visitação antoja
e agirá com vil lamoja
ante a brecha de mercado

bendirá a quaresmeira
louvará lobo-guará
o tamanduá-bandeira

cervo anta anu preá
a aroeira-pimenteira
o pequi e o araçá

– e não haverá porteira
pro turista que virá.

01/01/2017

Ano acabado

Vade retro
ano maldito

vá para os quintos dos infernos
lazarento

vá para a puta que o pariu


vá tomar bem no meio do olho do seu cu

ano infeliz
ano incapaz
ano menor

seu peçonhento
parece não querer acabar

vá que já é hora de ir
seu ano merda

ano fedido
ano fodido
ano cagão

vá e leve o seu preconceito
seu ano covarde
ano sem esperança

você não entendeu nada
seu ano acéfalo

você foi burro demais
burro demais caralho

burro e arrombado
seu ano boçal
você foi o ano em que nada mudou
como sempre
como sempre

seu ano fi duma égua
ano canalha
ano rolha de poço
ano cínico
ano jeca
ano punheteiro
ano sem honra
ano Cunha
ano antiquado
ano babão

ano banana
ano babaca

estúpido vagabundo
hipócrita imbecil

ano caralho de asa
maçante
miserável
neurótico
otário
ranzinza
panaca
traíra
ultrapassado

ah seu desgraçado
você é igual a todos os anos
você vai
e eu fico aqui
quando era eu
que era pra ir

e me livrar de tudo isso
que eu me acostumei a ser
com o passar dos anos.

25/12/2016

O Deus que habita em nós: Capítulo I - O filho de Marluce sem pecado

Foi abusada pelo seu padrasto
embarrigou e caiu na sarjeta
compreendeu que não há quem se meta
ou advogue por um corpo incasto

sumiu no mundo e não deixou rasto
levando pouco não mais que uma cheta
a roupa suja a sua pele preta
o seu bebê e um martírio vasto

mas eis que chega enfim o dia santo
num beco escuro nasce o seu menino
e o aconchego fez-se com o quebranto

como se fora um sinal divino
pra acreditar que foi um tanto quanto
abençoado todo o seu destino.

..........
Nota do autor:
Prezado leitor, este soneto é o primeiro de uma série de sonetos de minha autoria intitulada de 'O Deus que habita em nós', a qual ainda está sendo concluída. De toda forma, aproveito o clima natalino para publicar o primeiro soneto/episódio que narra o nascimento de uma vida nova (o que pra mim é um símbolo importante do natal) e já deixar uma prévia do que está sendo preparado para um futuro próximo.

No mais, desejo a você e a todos um felicidades e um final de ano mágico.

Aquele abraço.


Paulo Vitor F. da Cruz.

15/12/2016

Vênus

Tua beleza permanece sob a vigília dos meus olhos
não pelo fino traço da boca que seduz quando observo
não pelo olhar que envolve e arrebata quando me olhas
não pelo desenho perfeito dos quadris no passo lento

permanece sob a vigília dos meus olhos porque vibra
para além do que é pele carne ou alma

vibra e não se permite estar por dentro
porque precisa aflorar em comunhão com o mundo

vibra e não soma todas as coisas belas em ti
porque é beleza una tesa forte e natural

vibra e descarta logo a ideia de essência
pra evitar teses delirantes
e concentrar todo o meu pensamento no instante da contemplação

vibra e traduz a verdadeira feição feminina imersa no indizível da existência
para explicar
regada a silêncios e vazios
o que na vida é ser mulher.

22/10/2016

Amor materno para com as estrelas

Deitada no gramado
Jurou não demorar
mas foi até mais tarde
com a luz do luar

e o céu da cidade
num pasmo estelar
a viu abrir os braços
tentando abraçar

e ninar
o luar
cuidava do infinito
até o sol voltar.

.......


17/10/2016

Paulvito

Eu nunca gostei do meu nome
sempre quis mudar
melhorar a forma como sou chamado
tornar o nome mais meu
paulo vitor sempre pareceu não ser meu nome
paulo vitor vem de paulo victor ex-guarda-metas do fluminense
que por gosto acaso numerologia ou engano
saiu com a escrita diferente

eu nunca gostei do meu nome
mas sempre gostei menos de ser chamado pelo nome errado
pra ser sincero eu sempre achei um descaso danado
transformar-me em joão paulo
luís pedro
marcos vinícius
joão vitor
pedro paulo
júlio césar
marco antônio
josé paulo
paulo césar
e tantos outros

a glória era mesmo quando acertavam
e na infância
eu me lembro bem
os coleguinhas sempre acertavam
principalmente quando era pra me chamar pra brincar
paulvitooooo ô paulvitooooo
no bom mineirês
miscigenado e atropelado
que torna a pronuncia mais ligeira efetiva e breve
paulvitooooo ô paulvitooooo
eles me chamavam lá fora
e eu cá dentro
achava o máximo

se pudesse me rebatizava
pra ser chamado sempre assim
paulvito
porque sempre que ouço
me ocorre a lembrança de que fui menino
como um chamado
uma convocação pra voltar pra meninice logo
cheia de vida
e felicidade.

26/09/2016

Assombrado Blues

Nascido num Blue
fiquei à mercê
sem sonho nenhum
sem nada a perder

sou filho da luz
do amanhecer
que me abandonou
depois de nascer

dentre os bastardos sou senhor
safo e assombrado
vou

carrego em mim
o dom de vagar
por horas a fio
por todo lugar

não corro e não
pretendo parar
sou dilema eu sou
fumaça no ar

que flutua longe meu amor
que seja por onde for

voa e dispersa por completo envolvimento
voa e dispersa por completo envolvimento

contamino o céu
mas eu quero mais
e faço, meu bem,
o que não se faz

invado metrôs
cafés e jornais
o caos na tv
e a tua paz

nela eu despejo meu temor
porque sou o avesso
sou

aquele que vem
e vai provocar
o riso sem cor
a treva no olhar

ferida que não
se deixa sangrar
sou dilema eu sou
fumaça no ar

que flutua longe meu amor
que seja por onde for

voa e dispersa por completo envolvimento
voa e dispersa por completo envolvimento.


(Letra/Música: Dom Paulão e o Guitarrão)


.......

Link áudio: https://soundcloud.com/dompaulaoeoguitarrao/assombrado-blues

12/09/2016

Poema ébrio

Uma cerveja gelada
verte e vai ser comunhão
da boa e velha risada
que bons amigos se dão

louva a loucura lembrada
causa a saudade e então
sensibiliza a jornada
salva se não se está são

chamam-na assim camarada
e só não entende quem não
sorve por trás da cevada
contentamento e canção

ceifa sem hora marcada
sela a celebração
brinda por tudo e por nada
rima com esporte bretão

cerva de crivo certeiro
cumpre a sina servil
vai batucar no terreiro
e tem sabor de Brasil.

03/09/2016

Entre a tinta e o sangue

Escrevo assim como quem mata
ao modo frio e calculado

e o prazer vem por instinto
vem sem freio nem pecado

visceral
como a raiva
no universo virtual

nada sobra ao que falece
senão o fim

nada sobra

entrego a vida
o momento da vida
a tormenta
a alegria
e a frustração

porque palavra é corpo
e corpo cai
apaga
morre
enterra
é nada
é parte
chão

chão donde vem nova vida
vida que vem e resiste
por mais um tempo
e mais um tempo

escrevo assim como quem mata
e dá cabo d'um qualquer

o sadismo sentido
o envolvimento completo
o mal

santificam o afago endiabrado
a violência apaixonada e sem pudor

escrevo assim como quem mata
psicopata
sou.

27/05/2016

Poema incontido

A violência no corpo da mulher acontecerá neste dia
a supressão da dignidade da mulher acontecerá neste dia
a opressão de seus anseios e vontades
a invasão de sua privacidade
impulsionada pela força inconcebível das opiniões alheias
acontecerá também
tudo agora
tudo já
eu não fico sabendo
você não fica também
mas acontecerá
embora a gente não saiba
acontecerá
em alguma hora do dia
do dia que morre sem se debater
e tem a luz abafada pela vergonha de nos mostrar que este dia também é isso
luz que se cala e emudece
porque precisa aceitar que é mais fraca
e perderá a capacidade de iluminar no decorrer das horas
para que a noite sobressaia mais uma vez
como dizem os conformados
o dia não é diferente do que foi ontem
frustro-me também por não sê-lo
e ser capaz de com apenas a força do meu pensamento
frear toda a insensatez do mundo
frustro-me mas ainda tenho força para resistir
e não aceitar as coisas como elas são
é por essas e outras que levanto após a queda de cada dia
como forma de resistência
tendo o retorno da luz como companhia
a luz nos olhos da mulher
que clareia e alimenta a esperança do mundo
através do que pensa sonha e faz

ainda que tentem contê-la
ela resiste
luta
e vence
como a luz que entra por uma fresta da janela obscura
e supera a treva do quarto abandonado
com brilho e calor.

24/04/2016

Paraíso Tropical - Música

I.
Minha terra tem favela
e ninguém passa por lá
marginal controla a boca
e guri sabe atirar

tem doente abandonado
e remédio no cumê
meu vizinho é assaltado
a milícia enriquecer

mas o flagelado é forte
e aguenta um pouco mais
bota grade e cresce o muro
pra poder viver em paz

II.
minha terra tem sem terra
tem malícia do além mar
e quem representa o povo
sabe bem representar

com escambo e um bom papo
ele vai ganhar você
pra coisa ficar mais fácil
mas se nada resolver

reza ao santo magnata
e o bom homem diz amém
pra começar a novela
e tudo terminar bem.

....
Obs.:
Áudio da canção em: https://soundcloud.com/paullusvicthorius/paraiso-tropical

23/04/2016

Poema dolorido

Não recuses o martírio
nem maltrates o que sentes
a dor pode estar acima
dos motivos aparentes

e ser dor delírio dança
divindade em nossa terra
a lembrar que nessa vida
a história não se encerra

que a tristeza e o pecado
só se unem por paixão
que se é dor que te acompanha
pelos dias que virão

vences, pois, ela escolhe
muito bem com quem ficar
luta contra o discurso
que maldiz o teu pesar

e força-te à condição
de felicidade plena
presa à mesma emoção
frágil
falha
breve
amena.

21/04/2016

Silepse

Silepse
silepse
chicoteia a língua

sua alteza fica ouriçado
e o povo acompanhamos
toda a gente flutuamos
entre o certo
e o errado.

12/02/2016

The Poodle Cheese


Depois que ele chegou aqui em casa
não demorou quase nada pra aprender a fazer cocô só no quintal
e não entrar nos quartos pra bagunçar
porque mamãe ficava brava

não demorou quase nada pra aprender a sentar
a dar a patinha
a deitar
a abanar o rabinho comunicando que está feliz
a andar só com as patinhas traseiras
a pular bem alto quando desse fome
ou alguém estivesse com comida boa

não demorou quase nada pra cativar toda a família
e se tornar membro desta
assim como não demorou quase nada também pra ficar velhinho
ir perdendo a visão
e um pouco da saúde

o que não perdeu nunca foi a alegria
a sapiência
e o faro apurado pra ir atrás do churrasco alheio

não demorou quase nada
pra aprender a latir avisando que queria fazer pipi
quando não era mais possível ir sozinho ao local devido

aprendeu tudo da vida
nos quase 17 anos que esteve nesse mundo
aprendeu como quem consegue com isso um pouquinho de atenção
e a oportunidade de dar amor
e ensinar os segredos determinantes de companheirismo e amizade
a quem precisava aprender

no fim das contas
a gente sempre acha que poderia ter demorado mais

que não demore quase nada
pra entender que tudo foi no tempo certo
e que a missão desse pequeno
foi cumprida com o brilhantismo inspirador
de quem conseguiu ser menino a vida toda.


(Paullus Victhórius)

30/01/2016

Versos Malditosos

Escrevo estes versos para não pedir paz
para violentar o tempo sol e chuva

criar uma série de outros motivos falsos
que não traduzem o sangue e suor que disponho ao escrever

escrevo por não saber me conter
ainda que nada contenha

na carência de novidades
apego-me à invenção de uma mentira descarada
desmentida por mim mesmo três segundos após ser proferida

e escrevo por descontração
tentativa de convencer-te a baixar a guarda
e manter você aí
do outro lado
de alguma forma
aqui

na carência de esperanças de consegui-lo
confio no desespero
e aguardo a decadência impacientemente
enquanto escrevo frases ingênuas para me explicar
como a menina que espera para ganhar sua primeira boneca no natal próximo

na carência de razão no embate palavra invenção
encontro compreensão na força sem modos do discurso emocionado

na carência dum abraço amigo de boas vindas
a funesta dor invade a casa

carência
toda ela imersa na carência de alguém para escrever contando tudo isso

carência

por carência escrevo estes versos
que não deveriam acontecer em minha vida
mas que no entanto são escritos
vividos plenamente na confusão do dia azul
e sentidos com a mesma intensidade
da explosão fatal
de cometas suicidas.


(Paullus Victhórius)

23/01/2016

Dentro dos dias e das horas

Faltou você
e a sua resposta
e o seu cuidado
e o seu afeto
sozinho entre sombras
e detentores de sombras
labirinto-me
no meu mundo vil
e quero mudar de mim mesmo
e quero mudar de Brasil
mas falho
e toda uma geração apedreja
porque não sou autossuficiente
e não tenho preparo
não paro
continuo e fraquejo dentro dos dias e das horas
envergonho quem vence e acerta no espaço-tempo
por nossa proximidade genética
de imagem e semelhança
se morro não brota mágoa nem tristeza pra gastar
porque quem perde é escória
e escória não tem dor
minha morte seria o alívio
o grande alívio
pra todos nós
mas o final nem sempre salva no cinema carne e osso
sobrevivo
a sol
e gente
somente.

22/01/2016

Noturno da calma

A calma
tão rara
à noite
chegara

co'as marcas
na cara
que a vida
deixara

tranquila
chegara
e logo
ensinara

ao corpo
e à tara
que tudo
mudara

que pressa
não presta
não salva
não sara

o corpo
repara
aprende
compara

e logo
afara
a noite
é clara

e o elo
separa
e a sorte
azara

e o medo
dispara
a bala
a bala

no meio
da cara
ninguém se
salvara

ninguém se
salvara
sentado
na sala

ninguém se
salvara
a noite
é clara

tranquila
chegara
e tudo
mudara.

28/12/2015

Canção do cantador calado

Nada tenho contra os bons
os legais, belos e brutos
mas meu canto é noutro tom
nada de sábio ou astuto

sou só mais um cantador
que usa o canto como escudo
pra se proteger da dor
de ser parte disso tudo

o meu remédio é cantar de toda e qualquer maneira
sem leis para me nortear
sem motivos e sem fronteiras

pois não canto por querer
nem meu verso é por vontade
é como um vício qualquer
como uma necessidade

é o meu jeito de ser
de outro jeito, sou metade
e como ao meio não se é
canto pra ser de verdade

não, não posso me calar tal retrato na parede
o meu canto é meu lugar
me sacia em minha sede

e, em meu canto, eu canto só
canto pela vida inteira
e ninguém me ouve cantar
mesmo com a casa cheia

ninguém ouve, veja só
o que canto, penso e sinto
pois o meu corpo se cala
pra alma cantar bonito.

.......
O áudio da canção: https://soundcloud.com/pauleviteeoukulele/cancao-do-cantador-calado

17/12/2015

Deus está morto

Deus está morto
disse-me Nietzsche
e nós o matamos
como acreditar?

Deus está morto
e eu fico esperando
o terceiro dia
pra ele voltar

mas ele não volta
não pode
está morto
do mal
do abandono
de nós
e do outro

caiu
está morto
agora
e sempre

está morto e enterrado
mas não foi notado
porque nessa hora
chegava o recado

do crime na rua
do sangue vulgar
da morte vazia
de motivação

e todos correram
e fotografaram
e noticiaram
o fim que levou

e todos souberam
como se morre

e se perguntaram
do sangue que escorre
dentro das veias de cada um
desenfreado
constrangedor

quem o limpará?
não acham respostas
só ansiedade
e incerteza

Deus está morto
não vê e não pode
agir sobre isso
está esquecido
não pode sofrer

não pode salvar
não pode, não vê
e continuará
porque não se crê

no Deus que te acompanha nas pequenas coisas
na fé que mora no outro e em si mesmo
na inocência da criança com seus pensamentos
no fio de esperança do homem na sarjeta

o boato embolora
a fé do cristão
o consumo consome
a religião
se perde o rumo
a cruz
a paixão
e se morre tudo
Deus
pai
filho
irmão

e nós os matamos
fazendo uso da esterilidade e do desencanto dos dias comuns
da navalha impiedosa do desamor

e nós nos matamos
afogados em tudo aquilo que é menos
e já não temos paz
e já não temos mais
para onde ir.

15/11/2015

Pb, Al, Fe, Ba, Cu, B, Hg, et al.

Não há riso
não há rio
sinto-me seco
sem vida

o bicho homem matou o rio
matou o bicho
e a si mesmo

matou
mas não sairá impune
a natureza é mais forte
mais esperta
e sempre age para equilibrar as coisas

assim como a vegetação preserva o rio
que por sua vez preserva a vegetação
a natureza responderá àquele que aniquila as espécies
com sua aniquilação inevitável

poderia até argumentar nestes versos
se após a resposta a justiça será feita ou não
se o justo é isso ou aquilo
mas o meu lamento cresce, cresce
e não deixa espaço para mais nada.

07/11/2015

Mariana

A lama inflama
a fragilidade humana

derrama lama
no caos
no drama

leva a vida
lava o caminho

arrasa a casa
deixa sozinho

sozinho e sem nada
o bom camarada
e a senhorinha
de pobre a coitada

sem nada
paga o preço
pelo pecado
que não é seu

Mariana
chora
um rio de lama
agora

e ninguém consola
ninguém consola.

28/10/2015

Queria mesmo era ser tweet

Queria mesmo era ser tweet
ser breve
direto
completo

mas erro
confuso e extenso
prossigo
denso

erro
mas mantenho a fé

rezo antes de dormir para que os anjos estejam me acompanhando
e decidam por sorte minha
que sou merecedor de alguma dádiva surreal
que possa me fazer melhor no próximo dia

durmo bonito
numa cama qualquer
prossigo denso
mantenho a fé

me valer d'um instante apenas pra existir plenamente
há de ser meu estado de graça.

12/10/2015

Argumento contra os fatos

Raul Seixas faleceu em 21 de agosto de 1989
mentira
Raul Seixas vive
inspira coisas e pessoas
influencia pensamentos
e é eterno

o planeta Terra gira em torno do sol e de si mesmo
mentira
o universo inteiro é que gira em torno da Terra
gira pra lá e pra cá feito bobo para nos entreter
porque essa vida é uma merda
e ele se sente culpado
por nos entediar tanto

a força da gravidade puxa as coisas para o chão
mentira
chão é que é tesudo
e as coisas não resistem

"Adélia Prado sequer sabe da sua existência",dirão os pragmáticos
mas a verdade é que já me declarei pra ela muitas e muitas vezes
e confessei-lhe ao pé do ouvido
que ela bem podia ser minha mãe, minha amiga ou minha mulher
pra me fazer sentir especial pra ela também de alguma forma ao menos
mas a dor da frustração de não ser porra nenhuma
me vale mais

o dicionário diz que o amor é afeição acentuada de uma pessoa por outra,
que é zelo
e cuidado
mas eu amo com todas as minhas forças
o cãozinho que vive aqui em casa
e o livro do Fernando Sabino
e aquele filme do Forrest Gump
e os concertos de Mozart
- que, embora eu não tenha conhecimento suficiente para uma crítica decente,
me emociona pra cacete -

amo sem nexo
e isso pra mim faz mais sentido

porque é sem sentido que sinto
é sem sentido que gosto
é sem sentido que sigo

e se argumento contra os fatos
é justamente para não ter razão
a vida certa é cega
e eu não a quero não.

03/10/2015

Ordem

organiza as roupas no armário
organiza conforme o estipulado
dobra a calça a camisa comportamento e razão
move faz
junta guarda
ajeita
aceita
guarda
e aguarda a hora
em guarda
em guarda
aguarda a hora

ajeita as ideias e o cabelo
comportamento e razão
aceita
aceita
cala come
engorda vai

cumpre mais uma meta
e mais uma meta
e mais uma meta

como quem cumpre a ordem
de manter a ordem
e manter a ordem

porque se está tudo em seu lugar
ninguém vai vir contestar
porque está tudo em seu lugar
e você pode
você pode
descansar.

26/09/2015

Acode

Desligue o seu ar condicionado
que o ar seja incondicional
não aja nunca mais como o esperado
disperse e dispense o manual

acode porque o peito está cansado
invente logo um pulmão que voa
e alcance o perfeito estado
de liberdade ao sentir-se à toa.

07/09/2015

Elegia do tempo

Assusto-me

o tempo não permite tempo

é tudo pra agora
mas não há hora

não há hora em que tudo se encaixe

tudo é muito

ao passo que o tempo é pouco

impiedoso
mas pouco

precisaria de dois infinitos para viver o amor
e umas outras milhares de voltas ao redor do sol
para me esquecer desse fato lamentável
já que o infinito não é uma possibilidade para o pensamento racional

mas ainda resta uma parcela de tempo
preencho-a com todos os afazeres
todas as vontades
e todo o meu amor

a urgência do gesto subverte a brevidade das coisas
surpreendendo o próprio tempo
torna-se infinita
e permanece viva
em todo aquele que nasce e morre.

23/08/2015

Janela aberta

De Ubá a Rio Branco
de Rio Branco a Guiricema
a paisagem me envolve
feito tela de cinema

sigo em frente, sou mais forte
para a minha nova cena
vou e volto, voo alto
e o meu dia vale a pena.

15/08/2015

Bate bate

Bate
panela bate
mas
não sabe
sambar

não dança
não sabe
marcha

marcha
e vai
devagar

está pronto pra luta
mas
por que mesmo
lutar?

late
tramela late
vai
pra rua
rosnar

- ah
que os cães me perdoem
comparação tão vulgar -

está pronto pra luta
mas
por que mesmo
lutar?

09/08/2015

A voz do povo

A voz do povo é a voz dos seus
e diz aquilo o que aprendeu
com a vida dada por meu Deus
a vós
a ele
a ela
a eu.

14/02/2015

Nota de agradecimento

agradeço por abrir minha sacola
e averiguar se não estou carregando
nada mais do que aquilo que me é permitido
eu também sou vigiado
e isso faz sentido

agradeço por vigiar meus dados virtuais
certificando-se que não sou terrorista
nem estou envolvido numa nova conspiração
também sou espionado
mas só por precaução

agradeço por registrar a minha opinião nas urnas
de uma forma isenta e democrática
pois o meu não-envolvimento é por demais perigoso
eu também sou consultado
e isso é gostoso

agradeço por, ao declarar a minha renda,
contabilizar o quanto pode me levar
do jeito legal e consentido que a gente vê por aí
eu também sou assaltado
pra quê medo de sair?

agradeço por pedir meu cartão de vacina
para inibir que uma doença potencial
coloque em risco o convívio em sociedade
também sou contaminado
é por isso o alarde

contaminar-me-ei em pouco tempo com seus dogmas
costumes preconceitos
faltas destemperos
necessidades traumas falhas
taras e anseios vis
eu também sou condenado
a ser tão feliz

07/02/2015

Samba do hidrogel

foi aplicando hidrogel e ficando bonita e ficando bonita e aplicando hidrogel
e aplicando hidrogel e ficando bonita e ficando bonita e aplicando hidrogel

na coxa na teta
no grelo na bunda
passeio na praia
era ostentação

queriam comê-la
lambê-la mordê-la
pois quis o destino
que ela então

ficasse famosa
por ser tão gostosa
e desse entrevista
e fosse atração

de tão desejada
e hidrogelizada
fez foto pelada
ganhou um milhão

foi aplicando hidrogel e ficando bonita e ficando bonita e aplicando hidrogel
e aplicando hidrogel e ficando bonita e ficando bonita e aplicando hidrogel

qualquer um que a olhava
não acreditava
o que deu nessa louca
ai meu deus do céu

de uma hora
pra outra resolve
ficar mais sabida
e ganhar o nobel

ouvira dizer
que há prêmio em dinheiro
dinheiro, seu doce
com gosto de mel

pensou refletiu
e decidiu logo
é isso a cabeça
aplica hidrogel

foi aplicando hidrogel e ficando bonita e ficando bonita e aplicando hidrogel
e aplicando hidrogel e ficando bonita e ficando bonita e aplicando hidrogel

31/01/2015

Lei de Talião

Senhor distinto tirando foto com um pau de selfie na praça. Aproxima-se dele uma velhinha com uma sacola:

- Senhor, poderia me emprestar seu pau de selfie por um momento?

Ele estranha, mas concede:

- Claro, pois não.

A velhinha golpeia a própria cabeça seguidas vezes até ferir-se com o objeto. Logo em seguida devolve-o ao dono. Em seguida vai pro meio da rua, abre os braços, arregala os olhos e grita por socorro:

- Socorro! Polícia! Socorro!

Aparecem alguns transeuntes que estavam por perto no momento para tentar ajudar.

- O que houve, minha senhora?

- Esse homem me bateu com aquela vara.

- O quê? Você ficou louca?

Os transeuntes se comovem com a situação e partem pra cima do senhor distinto:

- Seu animal! Agredindo uma idosa indefesa...

- Filho da puta! Você é um monstro!

Forma-se uma multidão ao redor do senhor distinto. Começam os sacolejos. Os pontapés. Os safanões.

A polícia chega. A multidão abre passagem. Os policiais perguntam o que estava acontecendo ali. Informados, tomaram o pau de selfie do homem distinto. Estava suja com o sangue da velha. Imediatamente bateram nele utilizando-a. Desceram o pau. Quase mataram o desgraçado. Bem feito, pensaram os transeuntes. A justiça foi feita. A velhinha, que a essa altura já perdia muito sangue, foi levada ao hospital.

29/01/2015

O melhor sorriso

e ela me disse que o melhor sorriso que já deu
foi no colo do avô
quando ainda era uma rapinha de tacho

sorriso de alegria
de se começar a vida com amor

disse-me depois
se bem recordo
que aquele seria o seu melhor sorriso
até a chegada do dia em que ela viveria o outro lado
com sua neta no colo
e a lembrança daquele sorriso no coração

esse seria o dia em que ela veria que aquele seu melhor sorriso era na verdade
uma preparação para a nova experiência da alegria de continuar a vida com amor
na vida que não nos pertence
mas segue viva no outro
como uma espécie de legado intato
de herança das eras
de sobrevida espiritual

22/01/2015

Acontece

nossa, que engraçado
não consigo parar de rir
meu maxilar está doendo
não consigo parar de rir
acho que ele vai acabar saindo do lugar
não consigo parar de rir
meu deus do céu, é engraçado demais
meus músculos da face estão doloridos
não consigo parar de rir
olha só, estou até chorando de tanto rir
ai, meu deus
ai, meu deus
não consigo parar de rir
é engraçado demais
poxa, é sério
não consigo
não consigo
alguém me ajude
é engraçado demais
me levem pro hospital por favor
é sério
está doendo
acho que estou passando mal de tanto rir
é engraçado demais
meu deus, não consigo parar de rir
ai, meu deus, acho que não vou conseguir aguentar esperar
não vai dar pra chegar no hospital
vou morrer
vou morrer
vou morrer de rir
não acredito
eu vou acabar morrendo de r

29/10/2014

Sobra Um Silêncio

Vida passando
gente morrendo
na fila esperando
a cura chegar

a cura se atrasa
não há pressa, há preço
é caro
é caro
cê tem que pagar

ou paga ou morre
simples assim

ou paga
ou paga
com seu próprio rim

vida passando
gente morrendo
a cura deixando
a fila pra lá

a fila se abrasa
o mal é intenso
entendo
entendo
mas só se pagar

ou paga ou morre
coitado de mim

ou morre
ou morre
pagar?
nem assim...

não sobra escolha
nem tempo nem nada
é caro
meu caro
cê vai se virar

com as mãos para o alto
pois é um assalto

com as mãos para o alto
para a salvação

respira
respira
é só um assalto

respira
respira
é cheque ou cartão?

o cartão foi aceito
e você também
segunda à direita
vai logo, meu bem

abra bem a boca
com a língua pra fora
pra ver se a garganta
aguenta engolir

está tudo certo
a dor não existe
você que está triste
e foi se confundir

está tudo bem
levanta da maca
vê se não empaca
e sai logo daqui

a cura o expulsa
mas a dor persiste
e dói e inexiste
e o mata
e aí?

14/10/2014

A beleza não põe mesa

A beleza não põe mesa

não põe
se impõe

a beleza é a mesa

alicerça
-se
suporta o peso
existe em forma
espera
imóvel

a beleza do momento em que o momento transcende sua existência efêmera pra tornar-se eterno

- lembrei-me do nosso primeiro abraço
da falta de jeito
da naturalidade inventada por nós dois
pro riso sem sentido
pro momento incomum que era ali a gente junto

te ver é a coisa mais bonita
que eu já vi na vida.

09/10/2014

Desagravo urbano

Eu não olho pros seus peitos
de sacana, minha senhora
veja, o instinto é mais forte
do que toda a fauna e flora

como os cães ali na rua
prontos para procriar
um cheirando o cu do outro
como quem caça um lugar

pra sanar o seu desejo
fruto tenro do pecado
que pr'além do Alentejo

leva o mais civilizado.
Se eu olho é que latejo
e não me faço de rogado.

30/09/2014

27/09/2014

Lições de amanhecer 2

O céu, certo que é na vida,
não renega o seu quinhão
pois bem sabe que as nuvens
não são feitas de algodão.

25/09/2014

Trova confessa

Minha trova é minha treva
nela pago meu pecado
meço, engulo, suo, sofro
pelo verso ritmado.

Fada verde

- Sabe, fada, eu não sou santo
mas também não sou diabo
só deixei de ser perene
se não morro, eu me acabo.

23/09/2014

07/09/2014

Agosto 14

História real
aconteceu em Ubá
fulano caiu de moto
fraturou o fêmur
e teve um corte no pé
foi pro hospital
precisava operar
fêmur é coisa séria
mas era preciso ter calma
e esperar
foi atendido do jeito que deu
internado do jeito que deu
não deu
esperou muito
tempo passando
e mais
mas a dor sentida era maior
cirurgia sem previsão
a dor aumentava e então
passou muito tempo
tempo suficiente pro corte no pé ter sido olhado
limpo
cuidado
mas era preciso ter calma
e esperar
atendido do jeito que deu
internado do jeito que deu
não deu
o corte tinha pressa
sangrou
sujou
ficou
infeccionou
piorou piorou
e o pé do fulano
levou.

02/08/2014

Penso

Penso em você
penso nos seus olhos na sua boca
nos alimentos que você come
na intensidade com que os mastiga
em como engole os alimentos
penso em como eles se dividem dentro do seu corpo após serem engolidos
para se tornarem úteis à sua nutrição mantendo o correto funcionamento de seus órgãos
penso nos seus órgãos funcionando corretamente
no movimento de seus músculos enquanto você passeia pela casa
no suor que escorre em sua testa quando se exercita
na urina que você excreta quando vai ao banheiro
no efeito dos hormônios produzidos por seu corpo
penso na sua menstruação
em você se desfazendo dela e indo tomar banho
penso em você mudando a roupa
mudando a roupa e precisando ir trabalhar
penso em você indo trabalhar
penso em você chegando em seu trabalho
penso no seu trabalho
nas pessoas do seu trabalho
em como elas se comportam quando estão ao seu lado
penso em como elas se comportariam se presenciassem você sendo abduzida por extraterrestres
penso em como seriam os extraterrestres que te abduziriam
penso se fariam testes com você
e se chegariam a alguma conclusão
penso em quais seriam as prováveis conclusões dos extraterrestres a seu respeito
penso se descobririam mesmo o que você pensa
se compreenderiam sua forma de pensar
se você seria adorada pelo que pensa ou se os extraterrestres se esforçariam para melhorar seus pensamentos
penso se eles conseguiriam mudar seus pensamentos
se essa mudança reordenaria ou não o seu futuro
penso em como você poderia se comportar após a mudança de seus pensamentos
penso em como seria você pensando em outras coisas
tendo outros anseios outras preferências
penso em você sonhando com alguém como eu para casar e ter filhos
penso em como seria se você também pensasse em mim

30/07/2014

O furto

A maior verdade que existe em mim
é que sou roubado todo o tempo
todo o tempo
todo o tempo

mal acordo e tenho o sono levado pelo sol
- violência crua e vagarosa -
sou agredido pelo desespero do despertador
que alarda é dia é dia bip bip quando já nem precisava

o café da manhã tira de mim a fome matinal
saio de casa
um vizinho tem de mim um cumprimento que eu não queria dar
o menino brincando na rua arranca-me um sorriso sincero
a motivação do trabalho a ser feito
meu trabalho absorve enfim
e sendo esvaziado todo o tempo
a vida me apetece sim

e eu sou roubado todo o tempo
todo o tempo
todo o tempo

estranhos ao redor eliminam rebentos de alegria
com suas estranhezas civilizadas
estéreis e impiedosas
mas sequer suspeitam que mesmo sendo coagido e sufocado
espalho-me por aí teimosamente
tal qual praga em plantação
e espalhado multiplico
e multiplicado fortaleço
e fortalecido sobrevivo
para ter uma tarde alegre
e ser arrebatado outra vez

26/07/2014

Orgulho roto

orgulha-se da cor da pele
mas a cor da pele não é mais que a cor da pele
a cor da pele
superfície

orgulha-se do formato de seu corpo
mas o corpo não é mais que corpo
e ser corpo
é pouco
é pouco

orgulha-se de suas crenças
mas o fato de crer em alguma coisa
só conforta a si mesmo
a si mesmo
autodefesa

orgulha-se de sua sexualidade
mas a sexualidade é instinto
instinto
nada mais

orgulha-se do local do nascimento
mas o local do nascimento não é mais que o local do nascimento
é lugar
dentro de um mundo todo

orgulha-se das preferências políticas
mas as preferências políticas pertencem ao indivíduo
e à maioria
a voz

orgulha-se em pensar dessa maneira
mas vez ou outra pensa de diversas outras maneiras
e percebe que não há nada do que se orgulhar

25/07/2014

Cuidado curió

cu cu cu
cuidado curió
seu canto é perigoso
se esconda antes da ronda
calado viverás
cu cu cu
cuidado curió
cai fora que vem bala
vem, mata todos nós
canção aqui não vinga
o choro sim faz coro
alicerça o silêncio
que virá
cu cu cu
cuidado curió
aqui você não canta
cai fora a vida é dura
a vida é dura você morre
o dia morre
o broto morre
a gente morre
cê não vê?
cai fora cai cai fora
vai nascer o silêncio na rua
o silêncio sem poesia
o silêncio medroso que emudece e mata
canção aqui não vinga
não vinga não não vinga
não resiste a catinga
do sangue espalhado no asfalto
da feiura que a fumaça traz
e do rio que cheira a cu
cu cu cu
cuidado curió

23/07/2014

Poema a cores

Hoje eu vi passarinho
de cor bem-aventurada
ir voar fora do ninho
no seu voo fiz morada

dei vazão ao eu-menino
logo fui seu camarada
ante o ledo desatino
vi a liberdade alada

com suas penas coloridas
bater asas pro advento
da cor nova que nascida

traduzia ao mais atento
que sem voo não há vida
e colorir é alimento.

04/07/2014

Motivo

Todos os dias quando acordo ganho uma porção de novos motivos para desistir da coisa inútil e sem propósito da literatura, do sonho de prosseguir escrevendo e fim. Mas eu teimo, e a cada amanhecer crio através deles uma porção de novos motivos pra não parar jamais. É por eles que sigo. É pela natureza improfícua da literatura. Devo isso a ela. Ela salvou minha vida.


Paulus Vitórius.

14/06/2014

Sintético

Sinto-me ético
sintético
podre de pobre
hermético

inspiração foi embora pela janela
e nunca mais voltou.


Paulus Vitórius.