25/03/2020

Reminiscências crepusculares

Mamãe precisa ficar em casa agora
o mundo todo agora é perigoso

mas doce como ela
disciplinada como ela
ficar ocorre bem

surge aquele tempo de fazer coisas
coisas que a rotina não deixa

eu ainda preciso sair
mas tenho me cuidado
há um peso nos ombros deixando marcas
há uma vontade sempre urgente de voltar

justo eu
homem de paz que abomina a guerra
sou mais um soldado
contra o inimigo invisível

mas tenho me cuidado

o que me pega desprevenido
se posso confessar no poema
é chegar em casa
vê-la abrir a máquina de costura
- andava de lado há tempos -
perguntando de quem lembrava aquela cena

ora
tão fácil respondi "da vó"

então mamãe contou da infância
de ficar perto enquanto vovó costurava
de depois ir escondido
retirar a agulha com desvelo
e costurar alguns sonhos
numa folha de papel

contou também
da primeira vez que costurou de verdade
uma blusa de alcinha
blusa essa que vovó prontamente aprovou
das bermudas que fez pro meu pai
das roupinhas de bebê pra mim
ela foi lembrando
e foi lembrando

o fim de tarde foi abrir a porta pra memória entrar
eu juro que sei
mas não quis dizer
que os raios de luz do arrebol traziam as recordações
vindas do céu de onde vovó está

a poesia tem seus momentos
e estes precisam ser respeitados
da mesma forma como se deve respeitar as mães
e suas capacidades de surgir na hora incerta
com a palavra que mais precisamos


o laço remoçou a memória
e a memória estreitou o laço
o laço
apertado nó
que não se desfaz
como só quem sente
é capaz.

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